8M e a Luta da Lésbica Trabalhadora — A subsistência material feminina segue sendo a principal arena de resistência contra o regime hetero

Memória Lésbica
10 min readMar 8, 2022

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Por Jan Rossi

O 8 de março vem sendo recuperado em seu sentido fundacional nos movimentos de mulheres socialistas, grevistas, auto-organizadas. A data, sob o manto da palavra “mulher”, muitas vezes pouco menciona sobre as vidas lésbicas e seus dilemas, refletindo uma militância feminista heterossexista.

Enquanto isso é sabido que o maior desafio na persistência das existências lésbicas é a sua subsistência material. Isso porque uma vez que homens tomaram todos recursos na Terra, instituíram nações e travam guerras para espoliar mais territórios e recursos — como estamos acompanhando atualmente nos conflitos Rússia x Ucrania e Otan, Israel e Palestina, Turquia e Síria — a pobreza feminina é utilizada para forçar uma aliança com a classe que detém os recursos. Mulheres são originariamente, assim que nascem no mundo, destituídas dos meios materiais para constituir seu existir. Nascem sob nações, Estado, e Família controlados pela classe e ideologia masculina.

A Lésbica como já disse Monique Wittig, é fugitiva da classe mulher. Essa fuga significa que a lésbica é na economia patriarcal, tal qual os ludistas que destruíam as máquinas no nascimento da Era Industrial, sabotadoras da própria máquina de trabalho reprodutivo. Mais do que grevista, ela se retirou da reprodução social: a lésbica por definição é perseguida porque o sexo entre vulvas não vai parir, ela ao não engajar-se em relações heterossexuais, não serve sexual e reprodutivamente um homem e nem dá a estes os produtos humanos dessa relação, a saber crianças, muito embora muitas lésbicas sejam mães. Mas, assim que ela se lesbianiza, significa que interrompeu seus serviços e mesmo o investimento de subjetivação daquelas criaturas estará sequestrado por éticas lesbianas e há chances de que não entregará ao Estado um cidadão obediente do gênero. E isso incomoda o sistema.

Charlote Bunch no manifesto Lésbicas em Revolta dos anos 70, já dizia que as lésbicas eram a vanguarda dos movimentos de mulheres desde sempre, desde o sufragismo, pois não tendo uma relação heterossexual da qual depender para subsídios de vida, foram as que mais lutaram por direitos das mulheres para poder trabalhar, votar e participar da sociedade. Lésbicas no fim, conquistaram o direito ao trabalho remunerado na esfera pública e nem soubemos, porque estavam lá, no meio dos movimentos de mulheres, sem pronunciar seus nomes. No fim sua luta era pela existência lésbica mesmo quando dentro de movimentos socialistas, sufragistas e de mulheres.

O privilégio heterossexual é definido por Dee Graham como o acesso à renda, prestígio e poder dos homens (1994, pg. 122),sendo a base da busca feminina pelo vínculo heterossexual é o obter poder por tabela de associação a classe masculina. Também mulheres buscam nesse vínculo proteção da violência masculina a curto prazo. Muito embora tenham sido eles que criam a violência contra mulheres e que mantém o status financeiro das mulheres sempre baixo. Lésbicas estão fora dessas recompensas materiais, e travam uma luta pra manter sua existência rebelde muitas vezes na precariedade laboral ou na invisibilidade.

Em pesquisa realizada em 2013 pelo The Williams Institute, que mostra que 7.6% dos casais lésbicos estadunidenses vivem abaixo da linha da pobreza, enquanto 5.7% dos casais heterossexuais e 4.3% dos casais gays estão na mesma situação (THE WILLIAMS INSTITUTE, 2013). Aqui vemos como o marcador sexual tem importância, uma vez que embora homens gays sejam afetados pelo heterossexismo, eles permanecessem sendo homens e obtendo os prestígios dessa classe, mesmo que tenham sido destituídos em algum grau do reconhecimento nela.

O nascimento da nomeação das Lésbicas, a própria palavra que utilizamos, surgiu da intenção de policiar e investigar mulheres que desobedeciam a essa colaboração. Surgiu tanto da criminalização quanto da medicalização dessa existência inerentemente desobediente (Kitzinger, 1987). A palavra lésbica sempre foi utilizada para ameaçar qualquer mulher, investigar qualquer mulher por infratoras da lei heterossexual que demanda destinar toda nossa existência social e subjetiva ao opressor e explorador masculino. Quando homens se sentem ameaçados e não priorizados, criam suspeitas sobre a lesbiandade daquelas mulheres, inclusive sobre o movimento feminista inteiro (e sim, nós lesbofeministas estamos trabalhando para isso ser real pois soa como a própria utopia lésbica). Assim opressores mantém mulheres isoladas umas das outras, tornando qualquer vínculo entre elas ameaçador de sabotagem material masculina — porque na verdade tais vínculos ameaçam o poder dos homens sobre nós.

As mulheres que não colocam homens em primeiro lugar não recebem as recompensas e vantagens oferecidas às heterossexuais leais. O principal embargo que lésbicas enfrentam nas suas existências é o financeiro. Na sua resistência diária, lésbicas se desdobram para sobreviver no mercado de trabalho que as rejeita, especialmente se não portam as insignias que as discriminam como casta inferior: a feminilidade. Tal qual judeus eram obrigados por nazistas a portar a estrela de Davi, mulheres compulsoriamente são obrigadas pelo mercado de trabalho a comparecer maquiadas e feminilizadas (generizadas), motivo pelo qual caminhoneiras não passam em entrevistas de emprego e são empurradas para a precariedade em subempregos tóxicos como telemarketing, onde são mantidas escondidas das vistas de clientes, e em trabalhos diversos sem garantias trabalhistas e horários abusivos como Shopping Centers.

Lésbicas então são empurradas a invisibilidade como estratégia de sobrevivência, assim como a feminilização compulsória que nega seus Eus mais verdadeiros. Nas suas carreiras muitas vezes são levadas a esconderem sua lesbiandade, levando a uma defasagem social que prejudica o famoso “networking” que mulheres heterossexuais por exemplo sempre dispõem mais facilmente (STONEWALL, 2008). Isso também produz mal-estar psíquico nas lésbicas no ambiente de trabalho, cobrando sua saúde mental. Mulheres heterossexuais também, a partir dos casamentos, muitas vezes enriquecem, crescem em suas carreiras, dada a renda maior masculina. Por esse motivo que muitas vezes lésbicas tardias possuem uma renda melhor e um lugar de carreira mais privilegiado que sempre-lésbicas, já que assumiram sua lesbiandade num momento da vida que talvez estivessem mais confortáveis financeiramente para isso, muito embora tenha custado um preço alto psíquico, em relações violentas de exploração heterossexual na qual se sentiam cativas por anos e sentem que roubaram seu tempo de vida, relações insatisfatórias nas quais se sentiam reféns por insegurança de poder subsistir fora dela, assim como a chantagem que homens obtém quando há um vínculo hétero intermediado por uma criatura em comum, infante ou adolescente.

As famílias dão apoio à filha heterossexual, subsídios, ajudam o casal heterossexual a financiar uma casa por exemplo, ou a mulher que se relaciona com homens pode dispor do apoio familiar financeiro até conquistar sua vida profissional. Isso é interrompido para muitas lésbicas, cujas famílias expulsam de casa ou sabotam os casais lésbicos e a filha em termos de ajuda financeira. A lésbica precisa começar a trabalhar mais cedo devido a essa discriminação do casal sapatão em empregos que não exigem formação profissional, mal-pagos, tendo que trancar faculdade ou prejudicando sua formação, afetando seus futuros profissionais.

A estética feminilizadora heterossexista no ambiente de trabalho, já demonstrou Mackinnon (1978), possui vínculo com a objetificação, sendo um indício de nossa condição de prostituição social como classe mulheres, já que nossos serviços requeridos são basicamente sexuais e reprodutivos. Lésbicas escapam a estes serviços, feminilizar-se para passar pelo regime generizado heterossexual é uma forma que muitas lésbicas encontram de compensar sua desobediência e escapar à discriminação lesbomisógina, muito embora sua natureza seja caminhoneira. Em estudo de 2019 pela Trades Union Congress (TUC), encontrou que 35% das mulheres que se relacionam com mulheres reportaram que foram tocadas indevidamente no ambiente laboral, enquanto 21% reportaram terem sofrido assédio sexual e 12% disseram ter sido vítimas de estupro. Isso parte de uma lógica de estupro corretivo que subjaz muitas das interações de homens com lésbicas, e até mesmo de casais heterossexuais que fetichizam a lésbica em conjunto. Uma opressão heterossexista exercida por homens, principal mentor intelectual de toda opressão contra nós, e as mulheres que se alianciam a homens em relações sexo-afetivas. Acreditamos que tal grau de submissão que leva mulheres a exercerem e internalizarem a erotização da degradação de si mesmas e de outras se dá por todo condicionamento de paixão pelo opressor por sobrevivência psíquica e social, dado os prometidos benefícios sociais e proteção, valorização e status cedidos por eles no vínculo hetero, e provavelmente performam as sexualidades pornográficas exigidas por homens para garantir algum poder nessa relação. Pois o poder ensinado a mulheres é o de usar suas sexualidades para supostamente “controlar” ou “influenciar” homens, mesmo por meio da performance de fetiches, como estes de caráter lesboodioso, em casais hetero-sociais (independente de suas auto-identificações) que inundam os aplicativos de namoro. Essa pornificação (fetichização, hiper-sexualização) das lésbicas prejudica seriamente nossa segurança sexual no mundo, contribui para mais fatores de risco que enfrentam vidas lésbicas. No ambiente de trabalho se traduzirá em mais assédio sexual.

A premissa da fetichização e objetificação de lésbicas é a fantasia de correção das nossas sexualidades, de induzir sapatonas a apreciar homens, para que homens retomem o acesso ao seu mais antigo capital: os corpos das mulheres. A idéia central e histórica da lesbiandade é de se tratar de uma sexualidade exclusivamente clitórica e vúlvica, e consequentemente relações e economias humanas entre mulheres, levando a possível construção de um mundo feminino. A correção vem a tentar tornar essas mulheres corretas, impondo os papéis sexuais do qual fugiram. Como se nos recuperassem à jaula. Por meio dessa premissa, existe um aspecto próprio da lesbomisoginia à diferença do heterossexismo anti-gays, que é a invalidação constante da lesbiandade. Há a idéia de que não são reais nossos afetos e nossas vidas centradas em mulheres, de que é uma fase, uma ideologia reativa a homens apenas, que somos ilegítimas e nossa exclusividade insustentável. Que toda lésbica pode ser revertida a “bissexual” ou hoje “pan”, “queer”, que nossa sexualidade pode ser flexibilizada, e até mesmo que nossa exclusividade sexual é discriminatória, sendo que na verdade todas mulheres são fisiologicamente clitóricas na excitação sexual, a verdade sendo que o pênis é dispensável até mesmo para mulheres heterossexuais, não passando de uma prática mais reprodutiva do que sexual na maioria das espécies femininas planetárias.

Um aspecto da pós-modernidade que também vulnerabiliza as existências lésbicas é a desaparição das mesmas. Embora nosso nome tenha nascido dessa política de controle social masculinista, a palavra lésbica é fundamental para visibilizar a nós mesmas umas para as outras e existirmos, passou a representar o nome da nossa resistência pelo mundo, expatriadas do heteropatriarcado. Pergunto: como faremos políticas lésbicas, como construiremos orgulho lésbico, para avançar os direitos dessas lésbicas trabalhadoras, lutando para persistir em sua existência material, se hoje em dia lésbicas nem existem mais? E nossa existência é desvinculada de sua base material sexuada em sua definição? Que palavras podemos dispor se retiram nossas palavras mais próprias de nós? O principal ponto de partida de toda pessoa oprimida é nomear a si mesma, o nome é a consciência de pertencer a um grupo, de não estar só. Lésbica se refere a um grupo social feminino, a uma comunidade planetária de mulheres que priorizam mulheres, ou que potencialmente o faria. A consciência política pessoal é o começo da resistência coletiva. A partir do momento que lésbicas passam a se nomear como tudo, “não-binárias”, “trans”, “queer”, “bi”, “pansexuais”, tudo menos lésbicas, para fugir ao preconceito às vezes de si mesmas, já que tal situação é resultado da opressão internalizada, como iremos denunciar essas situações e lutar contra elas?

A pós-modernidade disseminou novos armários que embora forneçam proteção imaginária ou a curto prazo contra o lesboódio, ou a ilusão de ter fugido disso, no fim terminarão por asfixiar nossas existências e fazer o que o patriarcado sempre desejou: a extinção simbólica, o fim da “contra-propaganda” de que vínculos fora da supremacia masculina são possíveis, o desmantelamento da resistência feminina mais radical que sempre existiu ao longo dos tempos. As transições de gênero também aparecem nesse contexto onde o capitalismo médico e farmacêutico oferece supostas soluções mágicas para a opressão e suas sequelas pós-traumáticas como as disforias sexuais, o ódio ao próprio corpo, que sempre existiu desde que os corpos femininos são capital e recursos de sobrevivência básico das mulheres na prostituição matrimonial, nos vínculos heterossexuais, ou discriminados laboralmente para trabalhos inferiores, assediados no espaço público.

Lésbicas butch/caminhoneiras se encontram num lugar corajoso de assumir a existência lésbica — a que barra acesso sexual e afetivo masculino — e a rebeldia inconformista do gênero, e pagam alto preço por isso. Algumas cansaram de pagar com suas vidas por uma resistência que não encontra o respaldo coletivo, e cedem às seduções e pressões para transicionar para o aspecto estético mais masculinizado, de acordo com os estereótipos socialmente construídos de homem, para obter alguma passabilidade no violento regime heterossexual em que vivemos. Hoje em dia, carece de uma ética lésbica os proprios movimentos de mulheres, de facilitar a inserção laboral de lésbicas nas nossas economias criativas, lésbicas precisam ser priorizadas nas economias de mulheres. Exigimos que lésbicas sejam prioridade de contratação em qualquer serviço, empreendimento, cooperativa, que se diga feminista. É o mínimo que podemos fazer.

Por isso este 8 de março, queremos lembrar que a luta das lésbicas trabalhadoras segue demandando reforços. Em palestra de Sheila Jeffreys em Andalucía em fevereiro deste ano, ela relembra que lésbicas sempre foram o coração pulsante do movimento feminista. E precisamos mais que nunca, de mais lésbicas para construir este mundo que queremos. No entanto mesmo aquelas que não pratiquem sexo vúlvico, sempre podem como diz Audre Lorde, lesbianizar suas consciências, se inspirar em lésbicas e passar a priorizar mais as mulheres nas suas vidas.

Diz Jeffner Allen acerca das “Economias Lésbicas” (1996):

“Entendo Economia como a circulação social de valor, significado, e os básicos da vida diária. Economia Patriarcal é a posta em movimento, por homens, de valores, sentidos e bens que são direcionados ao bem viver dos homens. Tal economia demanda que Humanas sejam Mulheres, humanas que produzem e usam os objetos, crianças, idéias e moedas da economia patriarcal, e que todas humanas sejam heterossexuais: humanas engajadas na produção de uso de bens voltados para homens. Uma Economia Lésbica existe já, primariamente, mas não exclusivamente, como a escolha por mulheres de tocar, amar e viver intimamente com mulheres. A liberdade, sentido e prazer presentes em tais experiências desafiam o requerimento patriarcal de que mulheres produzam para fins masculinos.”

Somos a possibilidade de quebrar toda economia heterocapitalista patriarcal e construir outras lógicas de trocas sociais mais solidárias, comunais e menos assentadas no modelo predatório masculino, do qual o Neoliberalismo é mero reflexo fiel. Uma Economia Lésbica constrói um mundo de relação sustentável com o meio ambiente e a vida, num planeta que não seja sobrecarregado pela reprodução compulsiva heterossexual, e onde humanas sexuadas mulheres concentram as trocas entre si em cooperação, não mais sendo produtoras e reprodutoras para homens do regime de consumo irrefreável, destruição, colonização, dos homens. Toda mulher pode iniciar uma Economia Lésbica neste exato instante, instaurando novas lógicas de trocas sociais inspiradas em sua diferença sexual e ética feminina.

FONTES:

Charlote Bunch. Lésbicas em Revolta. Folhetim The Furies (1970).

Catharine Mackinnon. Sexual Harassment of Working Women (1979);

Dee Graham, Amar para Sobreviver. Mulheres e a Síndrome de Estocolmo Social. Editora Cassandra, 2021.

Jeffner Allen. Sinuosities, Lesbian Poetic Politics. Indiana University Press, 1996.

Monique Wittig. O Pensamento Heterossexual e Outros Ensaios (1990).

Mulheres Lésbicas e a Dupla Vulnerabilidade https://oit2020minionu.wordpress.com/2019/08/23/mulheres-lesbicas-e-a-dupla-vulnerabilidade-no-mercado-trabalhista/

Palestra Sheila Jeffreys em Andalucia (fevereiro de 2022): https://m.youtube.com/watch?v=0D5g3Ey4g1Q&feature=youtu.be

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Memória Lésbica

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