Existe uma infância lésbica?

Memória Lésbica
21 min readOct 20, 2022

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Por Mona e Jan. Com contribuições de Luana Maryah.

Foto e arte por Deborah Evelyn

Todas as lesbianas estão feitas de mulheres que regressam a si mesmas” (tatiana de la tierra, For the hard Ones: a Lesbian Phenomenology, 2018, pg. 78)

A primeira vez que uma lésbica ouviu a ofensa “sapatão!” foi geralmente na infância, por sua apresentação e comportamentos não-conformativos de gênero. Pensamos que se na infância o patrulhamento de gênero é tão intenso, é por ser esta um momento tão crucial de subjetivação, no qual as forças do regime heterossexual são investidas a fim de buscar determinar o vir a ser mulher (patriarcal), mesmo que essas investidas eventualmente fracassem. Sobre a figura da infância sempre deflagraram-se disputas ideológicas intensas e um uso do seu apelo para campanhas diversas: conservadoras-cristãs e familistas, contra ideologia de gênero, transativistas, anti-pedofilia, feministas, maternas, etc.

De um lado temos mulheres como Damares, que uma hora instrumentaliza a infância para fins eleitorais, em outro alerta para o perigo de que meninas sejam “transformadas” em lésbicas ao assistirem o filme Frozen [1]. De outro lado temos o contemporâneo fenômeno da medicalização transgênera de meninas que não cumprem os papéis sexuais designados a elas e, assim, por não serem inteligíveis na lógica do pensamento hétero, são levadas à identificação com o sexo masculino. E aqui, retomamos as feministas da diferença: “Que menina, tendo o infinito entre suas pernas, poderia desejar o limitante falo?”[2].

Onde se situam as feministas dentro dessa contenda?

Foto cedida por Giovanna do podcast Sapataria, ela é a goleira.

Sabemos que o lesboódio permeia o heterofeminismo profundamente e que nós, lésbicas, continuamos a ser vistas como uma minoria anormal, ou, no linguajar da moda, “dissidentes”, no máximo “orientações sexuais que merecem tolerância”.

Assim, considerar que existe uma infância diferencial na história de muitas lésbicas, é tratado por algumas feministas radicais com a costumeira escandalização que a hipersexualização da existência lésbica padece, omitindo outras dimensões da nossa existência. Embora o resgate de memórias sapatões infantis seja prática de autoconsciência comum no restante do lesbofeminismo latinoamericano, no Brasil o cenário é diferente, já que para defender a pureza de uma teoria, sacrificam e silenciam as histórias de vidas de muitas de nós.

Já feministas que adotam acriticamente a noção liberal de “orientações sexuais”, terminam por endossar o sistema da heterossexualidade compulsória, defendendo o inatismo e o contrato sexual patriarcal como um destino. Dentro dessa lógica, tanto existem crianças homossexuais, quanto heterossexuais, pensamento que a ampla produção teórica lésbica refuta há décadas[3]: as meninas são heterossexualizadas por um regime cruel e que cruza praticamente todas as esferas sociais.

Ou seja, nós, lésbicas radicais, nos encontramos em um fogo cruzado ideológico que de todos os lados mina nossa força lésbica, que nada mais é do que a força das mulheres livres.

Foto de Luana Maryah com sua mãe Madrilene

A mensagem recebida dos diversos lados é aparentemente diferente, mas em essência é muito similar: “sua existência é válida mas não pode ser incentivada”. Porém, a heterossexualização, assim como a transição das crianças — duas faces da mesma moeda –, segue enquanto projeto e campanhas de direita e esquerda: “Nasceu, fazer o que, só não se reproduza”. Nossa reprodução e propagação não se dá pelos genes, e sim por nossa visibilidade como propaganda revolucionária sapatão[4]. Então questionamos: até onde o feminismo e lésbicas cooptadas por uma agenda alheia a nossas prioridades não obedecem essa regra de não nos espalharmos e disseminarmos, não “darmos idéia” a outras mulheres e proteger as criancinhas da nossa “indecência”?

Há um motivo pelo qual tantos e tantas lutam contra a visibilidade da questão lésbica na infância: a heterossexualização da infância — tomada como normal, empreendida pelos brinquedos, mídias, cultura familiar, voltada à infância — deve seguir enquanto dispositivo político subjetivador. Muito se debate sobre como a feminilização e heterossexualização chegam a um ponto de internalização da psicologia de escrava quase irreversível[5], e acerca das dificuldades da abolição de gênero na prática. Então, nos perguntamos, se mulheres adultas já internalizaram a opressão, por que não focar em prevenir isso na infância e adolescência, disseminando referentes libertários de ser mulher, como os que a lésbica encarna?

Devemos, sim, falar com meninas sobre o ser lésbica, por mais que os demais se escandalizem, é justamente o que previne que mulheres tenham reais opções, não apenas sexuais, mas existenciais, pois ser lésbica — e precisamos a todo tempo lembrar nossas colegas que adotaram sem crítica os conceitos liberais que diminuem nossa definição — é sobre Existência Lésbica, e não práticas sexuais. Não somos apenas praticantes de uma sexualidade homoerótica. Nós sempre existimos e a sexualidade é apenas um dos aspectos do dom das lésbicas adultas para a rebeldia e insubmissão femininas, motores da transformação civilizatória.

Foto de Jamylle

Damares, que recentemente usou a figura da infância novamente de forma sensacionalista para fins eleitorais, estava certa sobre um ponto: sim, queremos que todas mulheres sejam lésbicas. Não, não nascemos todas assim, algumas nos tornamos. Não, não vamos nos desculpar por nossa existência sob discurso inatista. A verdade seja dita: somos todas clitóricas [6].

A primeira sexualidade de toda mulher é já na infância a descoberta de seu clitóris. Somos leais à menina livre que fomos um dia, ao nascermos sem consciência da existência dessa desordem simbólica toda, e que nasceu com clitóris, dom feminino para o prazer existencial [7]. A menina que andava sem camisa, que brincava sem preocupação descobrindo e amando a natureza e o mundo, que se roçava em objetos ao entender seu corpo e sensações, até ser censurada e proibida, interditada (inclusive com abusos sexuais adultos que distorcem essa elaboração do estar no corpo e sua sensualidade chamado posteriormente de sexualidade), de modo a se converter futuramente em serva heterossexual.

Perguntamos: quando você descobriu a masturbação? Quando foi a descoberta do seu clitóris?

Foto cedida por Millena

Desde nossa posição defendemos que existem meninas sapatinhas e, mais, que todas as meninas são potencialmente meninas lésbicas que cresceriam como mulheres lésbicas não fosse a interrupção dos laços entre mulheres e das mulheres com si mesmas operado pelos homens e suas cúmplices, a separação entre mãe e filha, que é parte do matricídio simbólico que funda nossa sociedade, a separação do corpo a corpo com a mãe que funda a sexualidade feminina [8].

Por motivos que podemos passar muitas horas debulhando em conversas criativas entre nós, algumas meninas que de fato crescem e se colocam no mundo como mulheres lésbicas são capazes de identificar suas infâncias como infâncias lésbicas. Também somos capazes de ver essa autenticidade alegre e tempestuosa da menina selvagem — que todas um dia fomos antes dos processos que visam nos domesticar — nas meninas que vivem hoje. Talvez os conservadores tenham razão em ter medo já que sua cultura falida depende da subjugação das mulheres, se meninas conviverem e souberem da existência de mulheres que escaparam do cativeiro heterossexual, que amam a si mesmas e as suas, que quebram qualquer regra estapafúrdia que a colonização masculina impõe sobre nossos corpos e comportamento, elas saberão que é possível, elas terão esperança, elas irão imaginar e a imaginação é sempre o começo de uma ação no mundo [9]. Imaginarão o que desejam ser em seu futuro: mulheres apaixonadas, sapatonas.

Foto de Mona

Reconhecer que fomos meninas lésbicas e falar abertamente sobre essa infância lesbiana é sobre Memória Lésbica. É sobre genealogia. É um passo na recuperação de memórias primordiais entre mulheres adultas, memórias de momentos em que se habitou o continuum lésbico [10], memória de quem somos e podemos ser para além da heterossexualidade compulsória. E, também, é, em um momento de crise patriarcal talvez sem precedentes, reafirmar que, sim, nosso objetivo é que todas as meninas e mulheres sejam lésbicas, ou seja: que sejam livres.

Como foi sua infância lésbica?

Infância sapatão e caminhão existe.

Por Jan. Com contribuições de Mona.

Foto cedida por Beatriz

Como já escrevemos, a primeira vez que a maioria das lésbicas de vida, caminhoneiras, rebeldes muito antes do encontro com um movimento feminista, descobriu que era diferente das demais, foi na primeira situação de lesboódio sofrida. Foi chamada de Maria Macho, cantarolaram Maria Sapatão a ela, riram de seus trejeitos, antes mesmo dela saber que sua existência era considerada um problema. Isso aconteceu já na infância de muitas. Sua existência livre foi aí marcada negativamente, ameaçada. No entanto, afirmamos: ser caminhoneira é um dom feminino e clitórico.

Para fins práticos e de potência política de nomear, chamaremos as meninas desobedientes de gênero de “pequenas caminhoneiras” ou, como já nomeamos o tema, “a infância sapatão”, “infância lésbica” dentro de como o lesbofeminismo amplia a palavra “lésbica” para além da sexualidade genital. O termo sapatão possui a vantagem de não precipitar uma interpretação de sexualidade, ainda em constituição, porém não inexistente como afirmam. É um reconhecimento da pré-lesbiana em sua aparecença estética e gestual, a lesbiana em devir, que necessita ser vista também na nossa visibilidade.

Foto de Victoria de Valle, flagrada vestindo as roupas do pai.

Precisamos ler o que escreveram lésbicas para além dos limites ideológicos que buscam nos separar. No livro “Chonguitas — Masculinidad de Niñas” de Fabi Tron e Valeria Flores [11] foram reunidos relatos de várias ativistas lésbicas sobre suas infâncias sapatão. Embora não apreciemos o conceito de “masculinidades femininas” de Judith Halberstam [12], Chonguitas (termo em espanhol para “Caminhoneirinhas”) é uma das únicas literaturas que vi nessa questão, tão escasso ou temeroso é o interesse na infância das lésbicas — ou seja, na história de vida das lésbicas.

Sobre chamar essas infâncias de “masculinas”, há aí um falso equiparativo com a questão da “criança afeminada”. É mais comum a aceitação à fala de que gays são afeminados, algo que se tornou uma forma de afirmação política destes. Assim, eles são equiparados e colocados juntos à classe subalternizada (embora preservem muitos privilégios masculinos, perdem outros dado o homoódio). Algo muito diferente é a lésbica ser comparada com a sua classe inimiga e opressora de sexo, os homens, quando somos chamadas de “machonas”, desejosas de sermos homens e afins.

Foto cedida por Pamela Assis.

Algumas lésbicas se veem representadas nessa apropriação das masculinidades, na criação de masculinidades femininas. Mas muitas, lésbicas feministas em especial, mas também lésbicas de vida, se ofendem e são diretamente oprimidas pelo comparativo, especialmente porque por meio de insultar lésbicas dessa forma são jogados nos ombros das caminhoneiras a responsabilidade que não é nossa, assim como a imagem simbólica, das violências e condutas masculinas opressoras e agressoras.

Luana Barbosa foi morta porque “se ela queria parecer um homem iria apanhar como um”. Expia-se na lésbica caminhão a violência masculina, para limpar os homens desse fardo, especialmente para fins de manter a dissonância cognitiva das mulheres heterossexualizadas que tem por homens o objeto de destino de suas energias sexuais, emocionais e laborais. Chamar a lésbica de masculina é pouco prático para fins políticos de consciência lésbica e feminista.

Mas, nos perguntamos, não seria o mesmo ser uma menina simplesmente produto do abolicionismo de gênero, cuja socialização não tem uma ênfase de gênero para nenhum dos lados contumazes (azul ou rosa, bonecas ou carrinhos… a criança que tem acesso igual a todos elementos), e ser uma menina moleca, cuja preferência extrapola os limites da socialização feminina e clama por aquilo que é apenas permitido aos meninos?

Foto de Giovanna de Podcast Sapataria

A exigência infantil dessa menina pela recuperação de recursos garantidos aos meninos através da socialização masculina, dos quais é constantemente privada, para nós é uma marca do que constitui a infância lésbica, narrada por muitas de nós. É essa mesma força que a motivará na vida a adulta a inequivocamente negar as investidas masculinas, a mesma força que faz com que lésbicas tenham estado à frente das propostas e ações mais radicais e fiéis às mulheres dentro do movimento feminista, é a força histórica que lésbicas representaram na história de resistência das mulheres ao serem inconvertíveis à heterossexualidade e fugitivas do contrato sexual, chegando a ser mortas antes de negar seu amor por mulheres e se submeterem ao condicionamento de escrava que é a feminilização.

Não haveriam efeitos psíquicos muito diferentes nesta menina moleca e a menina que não apresenta extremo incômodo com a socialização generizada destinada a ela? Por isso, Bev Jo (1990) chegou a enfatizar as diferenças existentes na comunidade lésbica, entre caminhoneiras e o que chamou de fems, ou dykefems, que aqui chamamos de lésbicas feminilizadas e desfeminilizadas. Negar essa diferença é negar a história e a experiência de algumas de nós.

Foto de Gabi Montilha

É substancialmente diferente a desfeminilização — um gesto e decisão política, de caráter contra-cultural e feminista, executado conscientemente por mulheres que passaram pela feminilização compulsória — e a vida de caminhoneiras ou butchs, que nunca foram feminilizadas, cuja sapatonice é involuntária e não construída posteriormente, e mesmo diante da compulsoriedade, sempre vitoriosamente fracassaram com muito sofrimento nessa performance, ocasionando disforia, sofrimento psíquico e vergonha ao assumirem sua “bofitude” [13]. Dentro desse debate, vemos que o que é constante negado é a existância dessa infância lésbica e, majotariamente, caminhão.

Foto de Maura Nascimento

O termo desfem, embora importante, vem engolfando as butches, talvez porque seu aspecto técnico corra o risco de servir de um tipo de novo armário à palavra caminhoneira, que é vista como mais ofensiva. Faz sentido integrar um movimento pela des-feminilização, pois essa massa crítica corajosa de mulheres (muitas vivenciam como um processo doloroso de renúncia à benefícios que a feminilidade traz como auto-estima e aceitação social, enquanto a butch o vive como uma libertação e alívio) habilita a liberdade de todas mulheres, e as caminhoneiras se sentem apoiadas por essa campanha. Mas precisamos enfatizar que há vivências diferentes, a primazia do conceito “desfem” por falar de uma posterioridade da desobediência de gênero, pode omitir a experiência butch de nunca ter sido “fem”, mesmo quando tentava em vão parecer uma [14].

Falar da existência lésbica na infância soa polêmico, mas se queremos que meninas caminhão sejam protegidas, precisamos sim que a educação sexual/humana seja integral e saibam da existência do continumm lésbico, ou as crianças sapas não são crianças?

Crianças precisam ser protegidas não apenas da pedofilia, mas do heterossexismo, do racismo, de variadas formas de discriminação e bullying, que atingiram a infância de muitas de nós. Negar uma denúncia de lesbomisoginia sofrida na infância, saída do silêncio anos mais tarde em relatos de lésbicas de situações de opressão na escola, no bairro, pela própria mãe e pelo pai machista, que intentavam regular e interditar, envergonhar, agredir a existência daquela “baby butch”, revela a cegueira heterossexista do movimento pela infância e do movimento feminista, é doloroso e cruel.

Também consiste epistemicídio a tentativa de dar outro significado e interpretação alheia à experiência definidora da própria pessoa lesbiana do que apenas ela viveu, onde desde um solipsismo tanto a mulher hétero como a lésbica não-butch diz:

- “não, você não viveu isso, crianças são apenas crianças!”. Apenas para a caminhoneira ter que insistir em não ter sua vivência invalidada:

- “Mas eu estou te dizendo, eu era sim uma criança sapatão…!”.

Consideramos que também as feministas, ao negarem a existência dessa infância lésbica caminhão, privam muitas garotas e mulheres de uma narrativa positiva e potente sobre sua própria história, as deixando à mercê de movimentos como transativismo que de pronto oferecem uma narrativa perigosa para essa infância, caminho que bem sabemos tem levado tantas de nós à medicalização e morte simbólica. É comum que heterofeministas críticas de gênero e gays críticos do transativismo também ofereçam narrativas paralelas nas quais meninas molecas crescem e se tornam “mulheres normais”, isto é, feminilizadas e heterossexualizadas. Qual a mensagem, de que essas existências foram domesticadas corretamente e agora são pessoas decentes? Opõem à imagem da criança “trans” (para nós crianças molecas) à hoje mulher feminilizada de perna cruzada heterossexual como uma imagem triunfante do conservadorismo de gênero. De que abolicionismo vocês falam?

Retirado da página “Gays Against Groomers”, de gays críticos do transativismo, o relato de uma jovem cuja infância era moleca e que desejava tirar seus peitos, a foto posterior e o modo que o texto é contado terminam por fazer uma narrativa de como hoje ela está a “salvo” da “Ideologia de Gênero”, com pernas cruzadas, uma moça correta e corrigida bem adaptada à feminilidade.
Shiloh Pitt, filha de Angelina Jolie e Brad Pitt. Muitos conservadores, e infelizmente feministas radicais também, comemoraram a feminilização de Shiloh, filha de Angelina Jolie. Antes disso o movimento trans criou e forçou a narrativa dela ser “criança trans” sem que isso tenha sido confirmado jamais pelos próprios pais. Feministas ao comemorarem a feminilização de Shiloh como prova dela não ser trans, demonstraram a hipocrisia de seu “abolicionismo de gênero”, além de terem violentado uma jovem tomboy provavelmente confusa a respeito das pressões para se encaixar típicas da adolescência.

Temos uma obrigação ética de nos opor à esse apagamento da existência lésbica. Lésbicas temem ser visíveis à infância devido a pecha histórica jogada constantemente por conservadores de associar homossexualidade com a corrupção da juventude e infância, e por isso muitas se escudaram na ideia de descobrir tardiamente uma “essência” sexual. Fogem da associação que liga nossa visibilidade ao incentivo desse caminho, dizendo que não temos efeitos sobre as crianças, mas a verdade é que, sim, nossa existência inspira e deve inspirar garotas a decidirem já cedo que não querem o futuro heterossexual do casamento e opressão masculina. Enquanto toda mídia incentiva as mesmas a serem princesas esperando por príncipes encantados, a serem beijadas enquanto estão dormidas, a se casarem com feras que transformarão em homens incríveis que toda mulher heterossexual adulta vive buscando incansavelmente (quando isso não se transforma em tornar o movimento feminista uma reforma de homens e relações com homens), lésbicas se escondem das mesmas e ainda apagamos essa nossa potência de revolucionar destinos.

A crítica ferrenha defende que dizer que uma criança é “viada” ou “sapatão” é sexualizar a infância e impor significados e “orientações sexuais” onde ainda não se configurou uma sexualidade genital adulta. Tal idéia é heterossexista, pois permanece centrada nas experiências de lésbicas tardias ou mulheres heterossexuais e se aproxima perigosamente da mentalidade conservadora que quer manter a imagem da criança assexuada e “inocente”, mas, como de costume no patriarcado, apenas empurra meninas para o cativeiro heterossexual, pois estimular a feminilidade não é visto como a [hetero]sexualização precoce que é.

O grande problema consiste que tal negacionismo ignora vivências não-heterossexuais. A militância pela infância é apropriada pelos setores conservadores da sociedade, buscando nessa imagem simbolizar a união da família e seus valores tradicionais, alegadamente ameaçados pelas existências desobedientes sexuais e de gênero. Também a militância heterofeminista criou uma fábula denegatória da sexualidade infantil, na qual manifestações da relação da criança com sua corporalidade, naturais em seu desenvolvimento psicossexual tão reconhecido por tantas experiências clínicas, são consideradas influência do meio ou hipersexualização midiática. Consideramos que cegar-nos diante das vivências infantis rebeldes do gênero e da heterossexualidade compulsória, tão investida por outro lado pela indústria infantil massivamente generizada, assim como negar a existência da sexualidade infantil, é vulnerabilizar as crianças ao abuso, seja pedofílico seja heterossexista, e não proteger as mesmas.

Nós lesbofeministas declaradamente buscamos propagar a existência lésbica e defender aquelas que já estão nessa trincheira, em qualquer idade, pois vemos aí uma ação direta de liberdade feminina.

Quanto antes uma menina ou mulher abarcar a possibilidade de um devir lésbico, mais livre provavelmente estará da escravidão à um homem, da maternidade compulsória, da violência femicida, de ter de passar por um aborto clandestino, de consequências psicológicas das relações abusivas com homens. Isso não é afirmar que não esteja livre do lesboódio, mas ainda assim a liberdade feminina lésbica vale muito mais a pena, pela gratificação que trazem as relações entre mulheres, no sentido erótico, emocional, econômico, estético, intelectual e muitos outros que são infinitamente poetisados.

Foto de Luana Maryah Bereza

Feministas que decidem escolher afetivamente mulheres passam a usar a palavra lésbica, se tornam lésbicas, e é muito importante que mais e mais mulheres escolham o melhor para elas. Mas lésbicas políticas precisam ter humildade ao debater, e lésbicas tardias não podem apagar a experiência de lésbicas de vida e afirmar que não existem e que não existe infância lésbica. Somos diferentes, lésbicas são plurais, somente estaremos defendendo as nossas se lutarmos realmente por todas lésbicas e escutarmos todas lésbicas. Lésbicas Políticas historicamente violentaram sempre-lésbicas, lésbicas de chão de fábrica, se posicionando como vanguarda e ditando o modo certo de ser sapatão — como deve ser sua sexualidade politicamente correta, como devem se portar, equiparando butches a jogos de papéis — e se portando arrogantemente como uma vanguarda intelectual, buscando domesticar a “selvageria” da sapatona raíz. Lésbicas anteriores têm precedência e autoridade no assunto.

Tanto sempre-lésbicas como lésbicas tardias passaram pela heterossexualidade compulsória, portanto trazer esse debate não é criar hierarquias de pureza como ressentidamente se afirma, termos como “gold star lesbian” jamais foram mencionados na literatura lésbica feminista. Ser sempre lésbica não quer dizer nunca haver sido tocada, maior parte das vezes contra sua vontade, por homens, ou não haver sofrido estupros e abusos na infância. É sobre perceber sua existência diferente desde a infância. Diz RadicaLesbians (1970):

“O que é uma lésbica? Uma lésbica é a fúria de todas as mulheres condensada até ao ponto de explosão. Ela é a mulher que, muitas vezes numa idade muito jovem, começa a atuar de acordo com a sua necessidade compulsiva de ser um ser humano mais completo e livre (…) Estas necessidades e ações ao longo dos anos, conduzem-na a um conflito doloroso [com a sociedade] (…) Pode não estar totalmente consciente das implicações políticas do que para ela começou como necessidade pessoal, num dado plano não foi capaz de aceitar as limitações e a opressão imposta pelo papel mais básico da sua sociedade — o papel de mulher. (…) Ela é forçada a desenvolver o seu próprio padrão de vida, muitas vezes vivendo grande parte da sua vida sozinha, aprendendo geralmente mais cedo que as suas irmãs heterossexuais acerca da solidão essencial da vida (que o mito do casamento esconde) e acerca da realidade das ilusões. Enquanto não conseguir expelir a pesada socialização que implica o ser mulher, nunca conseguirá estar em paz consigo própria.” [15]

Foto de Mylena

A psicóloga lésbica radical Celia Kitzinger, em “Changing Our Minds — Lesbian Feminism and Psychology”, escrito com Charlote Perkins [15], descreve como ainda menor de idade, foi internada num manicômio por seu envolvimento com uma garota, coisa que a deixou com sequelas para o resto da vida. Sempre-Lésbicas passam muitas violências, especialmente no período em que começam a ter contato com sua sexualidade, na puberdade e adolescência. A quem interessa impedir que falemos de infância e juventude lésbica afinal? A quem interessa o encobrimento das violências heterossexistas na infância?

Nós lesbofeministas nos recusamos a sermos usadas simplesmente como munição ou argumento apelativo apenas quando convém ao feminismo radical hétero, ao sermos aparelhadas pela campanha crítica do gênero. Somos críticas ao transativismo, mas essa não é nossa pauta prioritária e, ademais, não desejamos discuti-la sem responsabilidade política, pois envolve sofrimento real de sapatonas e a busca de saídas para este, através de mastectomias e hormonizações. Não iremos apagar a infância caminhoneira só para sustentar uma militância contra medicalização transgênera da infância que permanece sendo heterossexual, agrupando questões complexas em um mesmo balaio desde ideias fixas e ideológicas. E até onde as meninas não estão transicionando justamente porque lésbicas são invisibilizadas e ocultadas frente a presença infantil? Se não acolhermos as sapatinhas, o transativismo o fará enquanto, simultaneamente, executa um lesbocidio simbólico em massa.

Foto de Luca

Todos os tipos de lésbicas existem, mas já imaginaram o que é “tomar porrada” desde um período fundamental do desenvolvimento que é a infância? Propomos empatia no lugar do recalque, que fantasia que tal condição foi ideal e isenta de sofrimento porque tais mulheres não passaram pela heterossexualidade compulsória ou se descobriram antes. As caminhoneiras sabem as consequências psicológicas dolorosas de viver a lesbiandade na absoluta solidão e falta de recursos psíquicos, familiares, sociais, desde que se “conhece por gente”.

Ambas lésbicas, tardias/tornadas ou “nascidas”, foram duramente violentadas, as primeiras pela misoginia, as segundas pelo lesboódio. Tocar neste tema não é deslegitimar a lesbiandade de ninguém. Para não cairmos em arrogância que afasta muitas lésbicas do lesbofeminismo, inclusive empurrando muitas delas ao queerativismo e à transição pela carência simbólica e de representatividade, é preciso ouvir e respeitar as vivências lésbicas plurais, apreciar a disparidade entre mulheres, pois sororidade não é o mesmo que uma clonehood, uma irmandade de clones e de idênticas.

Lésbicas de vida precisam ser ouvidas na discussão sobre infâncias, pretendemos aqui colocá-las no centro e não na periferia de teorias e ideologias que as renegam ou apenas toleram.

A patologização da infância sapatão com o transgenerismo não é novidade na história lésbica, uma vez que a lesbiandade sempre foi alvo da medicina corretora desse modo de ser no mundo. A própria palavra lésbica foi criada pela sexologia, e a lesbiandade foi considerada em seus primórdios uma doença. A transmedicalização de crianças consiste em mais um dos ataques matricidas patriarcais à obra materna, que é o corpo da e do infante. A menina que se mutila demonstra no ato a cirurgia exercida de separação radical da mãe, buscando extirpar a mãe de si [17], assim como o nome concedido por ela.

E como já demonstrou Sheila Jeffreys (2014)[18], a indústria transexual já se antecipou — enquanto nós feministas preferimos ignorar ou negar — os rastros da rebeldia de gênero e do futuro elemento subversivo à ordem heterossexual, e se antecipa em corrigir esse caminho pela transexualização. Portanto o projeto transgênero neoliberal consiste na prevenção e extinção da existência lésbica assim como outras questionadoras da ordem patriarcal.

O início da vida sexual de muitas mulheres — mesmo as que hoje estão heterossexualizadas — foi com uma outra menina. A própria psicanálise sexista categorizou a sexualidade clitórica como imatura, infantil, e a vaginal como sinal da maturidade feminina. Maturidade e normalidade estas, funcionais ao regime dos homens. A negação da realidade sexuada, a base primeira de experiências no mundo, não ocorre pela primeira vez, seja pela clitoridectomia ou pelo transgenerismo, mas é base do processo de cisão fundamental do Eu feminino que requer a alienação e perda de si por meio da perda do seu corpo como fundamento do saber e do sentir. Se não houvesse o redirecionamento cultural patriarcal para a traição da menina clitórica que fomos, de modo a instalar o regime heterossexual, será que teríamos sociedades baseadas nos laços entre mulheres, a mais primitiva forma de relação humana instaurada na dupla mãe-a bebê? [19] Não será isso a ser prevenido pelo intenso investimento heterossexista nas infâncias?

Toda Lésbica encontra rastros de uma infância sapatão, e por isso fizemos convocatória para reunir as fotos deste artigo. O intento não foi de essencializar a existência lésbica num determinismo psíquico ou biológico. Estamos resgatando as evidências da rebeldia e seus sentires, lembranças das infâncias femininas fora da captura heterossexista, pois isso prova que a compulsoriedade da heterossexualidade não é tão fatal quanto feministas afirmam.

Resgate suas memórias mais ancestrais de rebeldia lesbiana.

Foto de Jan Rossi com sua mãe Marina

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(Agradecemos à todas que cederam fotos à gente: Deborah Evelyn, Giovanna, Luana Bereza, Victoria de Valle, Jamylle, Pamela Assis, Deborah Evelyn, Bia, Millena, Gabi Montilha, Maura Nascimento, Luca, e estimulamos que façam vocês também uma busca nas suas fotos de infância pelos rastros da sua liberdade feminina lesbiana).

Notas:

[1] Vídeo de culto de Damares onde chama Frozen de propaganda lésbica pois a personagem não casa com nenhum príncipe, pode ser visto em: https://www.youtube.com/watch?v=-wzXSK9F4GM.

[2] VERZINI, Barbara. La Madre en la Mar: el enigma de Tiamat. Barcelona: A Mano, 2021.

[3] JO, Bev; STREGA, Linda; RUSTON. Dykes-loving-Dykes. 1990.

[4] De qualquer forma, não é à toa que a trans-medicalização de crianças consiste na retomada de um projeto eugenista de limpeza social, como demonstrou Sheila Jeffreys em Gender Hurts (2014).

[5] GRAHAM, Dee L. R. Amar para Sobreviver: mulheres e a síndrome de Estocolmo social. Tradução de Mariana Coimbra. São Paulo: Editora Cassandra, 2021.

[6] LONZI, Carla. Sputiamo su Hegel, la donna clitoridea e la donna vaginale e altri scritti. 1974.

[7] GARRETAS, Maria-Milagros Rivera. El placer femenino es clitórico. Madrid y Verona: Colección A mano, 2020.

[8] IRIGARAY, Luce. El cuerpo a cuerpo con la madre. El otro género de la naturaleza. Otro modo de sentir, Barcelona: LaSal, 1985, p.35.

[9] GOMYDE, Monalisa. Rastros de Imaginação Lésbica: uma busca literária. (Dissertação de mestrado), 2022.

[10] RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica & outros ensaios. Tradução de Angélica Freitas. Rio de Janeiro: A Bolha, 2019.

[11] TRON, Fabi; FLORES, Valeria. Chonguitas — Masculinidad de Niñas. Editorial La Mondonga Dark. Neuquén, Argentina: 2013

[12] HALBERSTAM, Judith. Female Masculinities. United States, Duke University Press, 1998.

[13] Notamos também um efeito desse silêncio, carecermos de termos e definições que contemplem todas, por isso recuperaremos alguns clássicos com todas críticas.

[14] Sobre o conceito desfem, também vemos problema em um termo calcado na negativa de algo — a feminilidade — ao invés da afirmação de si — sapatão — pois nada se sustenta em pura reatividade: é preciso uma substância própria e um projeto de futuro. Mas não somos contrárias ao conceito nem ao gesto iconoclástico, apenas apelamos um cuidado que se deve ter de não colonizar e apagar a existência butch nem nos reduzir a mera negatividade, com o patrulhamento ideológico que traz dissociado do sentir.

[15]RADICALESBIANS. The Woman Identified Woman. 1970.

[16] KITZINGER, Celia; PERKINS, Rachel. Changing our minds: lesbian feminism and psychology. New York: New York University Press, 1993.

[17] RICH, Adrienne. Of Women Born: Motherhood as Experience and Institution. New York, W.W. Norton & Company, 1986.

[18] JEFFREYS, Sheila. Gender hurts: A feminist analysis of the politics of transgenderism. Routledge, 2014.

[19] CAVIN, Susan. Lesbian Origins. San Francisco: Ism Press, 1985.

Foto minha (Jan) com minha amiga Sheila que faleceu num acidente de moto, e por quem cheguei a ter afetos lesbianos. Infelizmente a heterossexualidade compulsória atingiu sua vida de forma mais ferrenha que à minha. Fica aqui minha femenajem e memoração.

Sobre as autoras:

Jan é psicóloga e psicanalista no projeto Psicoterapia Feminista voltado ao atendimento de mulheres e lésbicas, ativista lésbica-feminista, ilustradora em horas vagas e escritora eventual.

Mona é mestra em Estudos de Literatura, bacharela em Estudos Literários, pedagoga e professora. Atualmente cursa o Máster La Política de las mujeres. Também é poeta e gosta de fazer colagens.

Luana Maryah é uma mulher butch, formada em mecânica de aviões, atua com estética automotiva e escreve poesias e pensamentos sobre existência lésbica dissidente.

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Memória Lésbica

O legado sapatão não será apagado: conteúdo lesbofeminista que busca retomar as raízes rebeldes do movimento de lésbicas.