Pela Democratização do LesboCenso — a Luta Lésbica se constrói no Diálogo e nas Ruas

Memória Lésbica
6 min readFeb 22, 2022

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A Coletiva Memória Lésbica lamenta a queda da página da Lesbocenso. Desde o início, buscamos pautar o diálogo claro e confluente como proposta encaminhativa de resolução para as perspectivas divergentes acerca das problemáticas apontadas no formulário da importante iniciativa de um censo lésbico. Buscamos também uma abordagem prospectiva em sua repercussão e representatividade, objetivando contemplar a pluralidade Lesbiana.

Temos o diálogo e união de mulheres lésbicas como armas principais de nossa luta e resistência contra o patriarcado, nunca incentivamos o boicote do projeto. Nossa demanda foi a modificação e retratação pública dos pontos que ferem todas as lésbicas respondentes, solicitando ainda que pudéssemos participar na construção e nos disponibilizando para somar esforços. Nosso maior objetivo é sermos ouvidas, acolhidas e legitimadas, como rege a democracia.

Reafirmamos que apesar de nossas críticas e divergências ao Lesbocenso, e infelizmente, apesar também dos ataques discursivos e ameaças sofridas por nós e perpetrados pela organização, nunca apostamos na forma de atuação que retira espaço de movimentos, projetos e pautas lésbicas. Reiteramos que acreditamos na organização democrática para construir políticas públicas e lutas, especialmente em se tratando de militantes lésbicas.

Por fim, nos colocamos novamente a disposição para diálogo, troca e construção do Lesbocenso. Demandamos maior participação política e descentralização de processos que envolvem nossas vidas e nosso nome Lesbiana.

Outras críticas ao Lesbocenso

Post publicado nas redes sociais da LBL (Liga Brasileira de Lésbicas).

Lamentamos ainda a inabilidade e desinteresse do Lesbocenso em se pronunciar publicamente, de forma clara e honesta, sobre a retratação com a comunidade lésbica acerca de pontos butchfóbicos do questionário.

Sempre pedimos democratização e paridade do processo, paridade que não ocorreu uma vez que determinados grupos mostraram ter maior incidência sobre a orientação metodológica e política do Lesbocenso que outros. Em reunião (ocorrida em 6 de setembro de 2021) pedimos a elas que alterassem o formulário, retirando ou reformulando perguntas ofensivas para a comunidade lésbica, cujo retorno foi de que “não seria possível”, afinal “o Lesbocenso estava posto”, “somente daqui 3 anos” (data em que novamente seria executado o projeto). Posteriormente os pedidos de outros grupos — a saber, as dissidências de gênero — foram prontamente atendidos, provando que a reunião em que nos dispusemos a dialogar de forma pacifica, clara e construtiva para elas foi uma mera manobra política. Nessa reunião mentiram para nós. Mentiram para todas as lésbicas que entendiam o Lesbocenso como espaço aberto e plural. Retiraram a parte do questionário referente a violência, desta forma silenciando possíveis denúncias realizadas pelas dissidências genéricas sexuadas masculinas contra lésbicas.

Por fim, lamentamos e repudiamos a narrativa de demonização de lésbicas e feministas materialistas. Em uma estratégia de comunicação vitimista, usam folhetins independentes online, buscando criar uma caricatura de “extremistas”, “agressivas”, “violentas” para as lésbicas que apenas pedem critérios metodológicos mais objetivos, rigorosos e em consonância com a história do pensamento lésbico.

Consideramos ainda que apesar de utilizarmos a internet como meio de comunicação, as ações nas redes quando esvaziadas de construção política essencialmente feminista e lesbiana contribuem apenas para a polarização e esvaziamento de pautas de nossa comunidade. Lembramos que a arquitetura das redes e os algoritmos ainda são masculinos. Derrubar uma página construída por e para lésbicas não vai derrubar a lesbomisoginia nem construir um censo criterioso. As políticas lésbicas devem acontecer no debate e nas ruas. Ações cibernéticas podem não passar de desencargo de consciência que substituem um verdadeiro ativismo organizado que necessitamos mais que nunca hoje para construir nossa força como lésbicas rebeldes.

Leia Abaixo nossa Carta Aberta a LesboCenso

Escala de Masculinidade, considerado lesbomisoginia por muitas lésbicas

A seguinte carta foi elaborada em conjunto por coletivas lésbicas radicais e assinada por 146 sapatonas, enviadas à equipe LesboCenso por meio da qual tivemos possibilidade de realizar reunião e colocar nossas demandas:

“Pedimos que apenas mulheres lésbicas respondam ao questionário.

Saudações, companheiras,

Primeiramente parabenizamos o projeto de vocês, Lesbocenso (https://lesbocenso.com.br/), de grande importância para nossa comunidade, assim como futuras pesquisas e elaborações de políticas que atendam à população lésbica.

Viemos por meio desta estabelecer um diálogo e apresentar uma crítica amorosa que possa contribuir para uma possível maior efetividade e abrangência deste.

Temos tido muitas queixas de lésbicas desfeminilizadas que não estão conseguindo responder como gostariam o questionário. Elas estão encontrando principalmente dificuldades com a “escala” de masculinidade x feminilidade na “expressão de gênero” e na “identidade de gênero”.

Entendemos que a pesquisa está sendo realizada desde alguns conceitos teórico-acadêmicos e que são os instrumentos que vocês escolheram para elaborar o censo lésbico, porém tais categorias acabam invisibilizando lésbicas que recusam tais definições, que reproduzem a perpetuação de uma compulsoriedade dos estereótipos socialmente construídos e que se colocam como únicas possibilidades para a existência lésbica dizer a si mesma.

Companheiras do Lesbocenso, são muitas lésbicas agora na comunidade sapatão que se definem na categoria #desfem, ou seja, não se reconhecem como “lésbicas masculinas”, e sim como lésbicas desfeminilizadas. Estas são lésbicas caminhoneiras, butch, sapatão, tomboys, bofinhos. Ou seja, não-feminilizadas. Elas encontraram nessa categoria o conforto que almejavam para expressar uma existência que não busca “parecer um homem”, e sim apenas ser livre da imposição estética heterossexista sobre mulheres.
Dessa forma que a pergunta sobre o “padrão de masculinidade” e “padrão de feminilidade” está colocada, a lésbica respondente é obrigada a se inserir em uma categoria de compreensão de mundo e da própria identidade binária que a condiciona a compreender a sua negação da feminilidade como obrigatoriamente uma aproximação da masculinidade. Essa narrativa, quando levada às suas derivações, reforça a narrativa patriarcal de que “lésbicas querem ser homens”, quando na realidade a lésbica não feminilizada apenas não deseja cumprir o papel degradante que foi concebido pelo patriarcado para as mulheres. Muito menos deseja estar no outro lado, no papel também degradante e opressor do homem.

No mesmo sentido, a questão sobre “identidade de gênero” obriga as mulheres a se identificarem com termos como “cisgênero”, “pessoa trans”, “não-binária” ou “agênero”, que reforçam a ideia de que gênero é uma identificação e sentimento individual e opcional quando na verdade gênero é um sistema patriarcal que serve aos propósitos de explorar mulheres. Muitas lésbicas têm optado por responder “outro” a esta questão, expondo seu descontentamento às opções pontuadas, o que pode gerar informações distorcidas sobre a materialidade das participantes. Sugerimos a consideração de uma opção “crítica ao gênero”.

Pergunta do questionário também refutada por parte da comunidade lésbica crítica do gênero, uma vez que está ideologizada

Entendendo a importância do projeto, pedimos que incluam outra possibilidade, pois isso estará comprometendo a pesquisa de vocês, já que muitas não estão conseguindo responder e isso resultará novamente no apagamento histórico das lésbicas, e justamente de lésbicas desfeminilizadas, as mais vulneráveis ao lesbo-ódio.

Para muitas lésbicas, a ideia de ler sua inconformidade de gênero como “masculinidade” ou “transgeneridade” é sentida como lesbomisoginia e negação da nossa mulheridade. Para muitas, essa é inclusive uma experiência de violência e invisibilidade em seus cotidianos, pois invalida nossa pertença à humanidade feminina. Vide a ocorrência com Amanda Vieira, que sofreu violência lesbo-odiosa, tendo a funcionária aberto seu provador com ela nua, negando que pudesse ocupar o espaço dos provadores femininos por sua estética desfeminilizada. Esse tipo de conceito que nos associa ao masculino compulsoriamente vem excluindo as lésbicas da definição da humana do sexo feminino e causando quadros psicológicos de disforia sexual, intenso descontentamento com o seu sexo por conta da associação deste com o gênero forjado pelo patriarcado como “feminino”. Ou seja, vemos como desumanizante tal situação. Lésbicas são mulheres, lésbicas não querem ser homens ou parecer homens. Lésbicas querem se vestir como desejam, fazer atividades que as aprazem e se essas roupas e atividades foram definidas como “masculinas”, isso não nos faz masculinas.

Agradecemos a leitura até aqui e a atenção e aguardamos a resposta de vocês. Esta carta foi elaborada por grupos de lésbicas autônomas e foi difundida de maneira restrita para ser abaixo-assinada, sem a intenção de prejudicar a pesquisa.

Com muita sororidade,

Memória Lésbica (memorialesbicas@gmail.com | @memoria.lesbica)
Sapataria Podcast (podcastsapataria@gmail.com | @podcastsapataria)

31 de agosto de 2021.

Sobre o ocorrido com Amanda, veja a matéria: https://www.bnews.com.br/noticias/principal/brasil/319699,funcionaria-da-renner-confunde-mulher-lesbica-com-homem-e-abre-provador-nao-sou-moco.html

Solicitamos que ajudem a alcançarmos lésbicas insatisfeitas com os critérios da pesquisa, repassando este documento àquelas sujeitas e organizações que possivelmente assinariam este documento.”

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Memória Lésbica

O legado sapatão não será apagado: conteúdo lesbofeminista que busca retomar as raízes rebeldes do movimento de lésbicas.