Visibilidade Lésbica 2021 em Memória de Ana Campestrini: Mulheres desertando a Heterossexualidade

Memória Lésbica
11 min readAug 7, 2021

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Escrito por Janaína Rossi (Jan), Monalisa Gomyde, Laira Tenca.

“A Lésbica é a Vanguarda do Humano” — Monique Wittig (Homo Sum).

Em 22 de junho de 2021, segundo ano da pandemia ou necropolítica mundial do coronavírus, Ana Paula Campestrini foi brutalmente assassinada. Lésbica desfemilinizada de 39 anos, mãe de duas crianças e uma adolescente, Ana Paula foi mais uma vítima de lesbocídio. Bastaram 14 tiros para interromper sua vida, assim como sua alegre fuga do regime heterossexual.

Ana nasceu no interior de Santa Catarina. Podemos imaginar a dificuldade de ser uma sapatona em uma cidade pequena do sul do Brasil, com todo seu conservadorismo e branquitude, responsável por grande parte dos votos que elegeram Bolsonaro em 2018. [1] Ela esteve por 17 anos refém cativa da heterossexualidade compulsória e violenta com o homem que viria a executá-la, sendo o motivo da execuçao sumária a escolha de Ana Paula de deserção do cativeiro heterossexual.

Ana Paula Campestrini, que estava desenvolvendo a fotografia no momento em que sua vida foi interrompida assim como sonhos, junto a sua família. Fonte: instragram.

Como diria Monique Wittig, as lésbicas são fugitivas da classe econômica mulher.[2] Elas se recusam ou então rejeitam seguir na escravidão reprodutiva do trabalho de cuidado e reprodução. Corajosamente, perseguindo seu desejo, mesmo após anos nessa prisão, mulheres, mães, escapam de perigosos relacionamentos com muita dificuldade. Como esperado, dentro de um regime político heterossexual, Ana foi dolorosamente privada do contato com os filhos. A privação do contato da mãe com sua prole é comum em um sistema juridico que permite que filhas e filhos sejam utilizados como ferramenta de coerção pelos homens. Isso é percebido na opressão da justiça masculina através dos processos de guarda perpretados contra Ana, e por meio da criação da Lei de Alienação Parental, que reverte automaticamente a guarda para pais agressores caso sejam denunciados por violência doméstica. [3]

Corajosa, ela não desistiu, trabalhou como diarista e motorista de aplicativo para conquistar a libertação econômica do despotismo masculino que faz mulheres cativas domésticas. Essa é a realidade de muitas ubers, entregadoras e trabalhadoras da limpeza: mulheres que estão escapando de terroristas domésticos, especialmente no contexto da pandemia. Vítimas do patriarcado, por vezes encontram na uberização do trabalho a única forma de subexistência em uma economia cada dia mais destroçada por políticas economicas neoliberais e essencialmente patriarcais. Em meio a crise que vivemos, ela encontrou apoio e amor em Luana Melo, outra mulher lésbica, hoje viúva de Ana: duas mulheres que se se sustentaram no processo de cura e reconstrução, e viveram os prazeres da lesbiandade durante o breve período de libertação da jaula heterossexual forjada por mãos masculinas que aprisionavam Ana.

Os suspeitos do lesbocídio possuem nomes: Wagner Oganauskas, o ex e agressor, e seu colaborador no crime, Marcos Antônio Ramon. Trazemos a Memória e pedimos Justiça para Ana Paula Campestrini. Nos solidarizamos com sua filha e filhos que ficaram sem mãe e sororizamos com sua companheira Luana Melo. Não esqueceremos!

O caso de Ana Paula Campestrini deve servir para fortalecer mais do que nunca o significado radical da lesbiandade, em tempos de distorção do seu sentido histórico, cultural e político: a lesbiandade é a ação direta contra a classe masculina, por meio do exílio de seu sistema e mundo. É ocupação ativa de territórios através da nossa cultura e nossas idéias. E é, principalmente, uma idéia a ser compartilhada com todas mulheres. A lesbianidade é a revolução concreta e a realização da utopia. A lesbiandade é o mundo possível.

A violência masculina mostra novamente seu caráter perverso em tempos de pandemia, como pode-se notar pelo ocorrência constante de lesbocídios e femicídios e pelo aumento e banalização do mercado da pornografia (a exemplo, o Only Fans, rede social de pornografia), que se aproveita do desespero e exclusão financeira das mulheres em tempos de austeridade econômica.

Não há dúvidas do quão perigoso é compartilhar um teto com homens, únicos autores da violência sistemática contra nós. Nosso ativismo é por mais mulheres desertando a heterossexualidade compulsória. Continuaremos a denunciar os riscos da heterossexualidade predatória para nossas corpas, resgatando a verdadeira sexualidade feminina: a clitórica.[4]

As relações com homens matam mulheres tanto quanto a pandemia de Covid19: se atualmente uma pessoa morre da infecção a cada 15 segundos no mundo [5], a cada hora, 6 mulheres são mortas por femicídio neste mesmo mundo [6]. Dados que certamente se incrementaram pelo isolamento social destas mulheres, ocasionando na intensificação da dependência financeira, considerando o desemprego ocasionado pela pandemia, que atinge sobretudo mulheres. As mulheres lésbicas são as primeiras a serem demitidas em cenários de crise econômica. É inegável que muitas mulheres são infectadas e morrem devido à conduta temerária machista de seus companheiros, filhos e colegas de trabalho, que desprezam protocolos de cuidado. Homens se recusam a usar a máscara, por considerarem como femininas as atitudes de cuidado com a vida e com o outro.

Não há diferença entre o ato masculino de recusa a usar máscara e o ato misógino de recusa do uso de preservativos, retratos do comportamento autrodestrutivo da masculinidade. Da mesma forma, o coito heterossexual, mesmo com todos os riscos que representam para mulheres frente a mesma conduta masculina de falta de empatia e cuidado, segue normalizado, incentivado pela pornografia e colocado como paradigma falocêntrico da sexualidade humana, invisibilizando o prazer feminino. Pois a sexualidade feminina é uma só e universal: a sexualidade clitórica. Lésbicas, heterossexualizadas, auto-identificadas bissexuais: todas possuímos o mesmo corpo sexuado e dotado de um órgão somente destinado ao prazer, o clitóris, prova cabal que desmente nosso suposto destino reprodutivo.

Não desejamos vexar mulheres heterossexualizadas por suas escolhas afetivas, pois são nossas companheiras políticas em muitas lutas conjuntas, e entendemos a força da socialização promovida pelo patriarcado na vida das mulheres desde meninas para que amem e priorizem homens. Mas sentimos necessidade de desvelar algumas verdades para que tenham consciência e se defendam, na medida do possível, das inúmeras situações de violência e insegurança em que são colocadas. Rogamos para que repensem suas relações, e reflitam sobre suas condutas políticas e o reflexo da norma heterossexual nas relações entre mulheres. O lesbofeminismo pode beneficiar TODAS as mulheres, inclusive as heterossexuais, nem que seja para que deste extraíam éticas de valorização dos laços entre mulheres e priorização política das mesmas.

Apelamos pela fuga da “classe mulher”, realizada pela lésbica nas palavras de Wittig. Essa fuga é econômica. É a fuga dos trabalhos desempenhados para homens e seu sistema, mas não é a deserção da classe política mulher pela qual nos organizamos. Defendemos a palavra “mulher” pois esta, assim como a palavra “lésbica”, é nossa barricada firme nessa batalha e nosso posto avançado na trincheira. São dispositivos discursivos que retomam a consciência de nosso lugar no mundo e história.

Atitudes governistas proselitistas, como a aposentadoria para trabalho doméstico que o estado argentino anunciou recentemente [7], não libertarão as mulheres, pois formalizam a servidão não-remunerada no regime heterossexual ainda mais. Essas medidas não podem ser tomadas como fins, mas no máximo como meios para a emancipação feminina. Jamais devem ser entendidas como a maior conquista de nossa batalha. Devemos nos perguntar: até onde ela beneficia as mulheres, considerando que tantas de nós são mortas e nem chegaremos a velhice devido à violência masculina e ao ginocídio capitalista por precarização econômica e de saúde? Por esse mesmo motivo, olhamos com desdém a comemoração da aposentadoria argentina para a maternidade compulsória, pois muitas mulheres sequer chegarão a se aposentarem, sendo mortas por femicídio e lesbocídio seja por estarem no cativeiro doméstico, seja por terem fugido do mesmo.

Mãe protesta com filho na Argentina, pela legalização do aborto. Fonte: yahoo notícias.

A violência contra nós, mulheres que fogem do cativeiro heterossexual desde a tenra infância ou no decorrer de suas vidas adultas, provém do fato de que a existência lésbica é o completo oposto da sociedade patriarcal e a maior ameaça para a destruição do modelo capitalista predatório e colonizatório. Nenhuma reforma mudará a constituição essencial que mantêm a coesão social patriarcal, pois é inerente a ela a opressão das mulheres e a punição exemplar daquelas que a desertam. Por esse motivo, as reformas acabam sempre sendo utilizadas contra nós, prendendo nossos pés em correntes ainda mais pesadas, ou sendo utilizadas como ferramenta de manipulação de nossos afetos, principalmente o medo através da constante ameaça de que sejam revogadas.

A eliminação física lesboodiosa de Ana Campestrini é um exemplo de como tal diálogo proposto pela lei argentina com o sistema patriarcal é um engodo. O trabalho doméstico é uma situação de risco de vida para mulheres e crianças, sendo a maior parte dos abusos sexuais infantis efetivados nas famílias pelo próprio pai, e deve ser abolido enquanto trabalho exclusivamente feminino. O trabalho doméstico deve ser distribuído igualmente e tomar caráter comunal. Não devemos cair na cilada de legitimar o trabalho reprodutivo escravo e a maternidade compulsória, que são formas de homens aprisionarem mulheres. Devemos destruir todos os cativeiros heterossexuais e criar consciência nas mulheres para que desobedeçam ativamente essas instituições: não casar, não parir, e recusar relacionamentos sexo-afetivos com homens, escolher mulheres para destinar afeto e erotismo, destruindo o mito anti-científico da “orientação sexual”.

Carla Lonzi clamou décadas atrás: “Que não nos considerem mais as continuadoras da espécie. Não daremos filhos a ninguém, nem aos homens, nem ao Estado: temos que dar algo a nós mesmas, restituirmo-nos a nós mesmas.” [8] Nós concordamos! Dentro do cativeiro heterossexual mulheres perdem não só sua liberdade, mas a si mesmas. Fugir é nos restituir a nós mesmas e abrir a possibilidade de direcionarmos nosso amor e desejo para nossas semelhantes. A dominação masculina depende da separação das mulheres, da retirada de nosso poder de reconhecimento e sororidade, depende de que não nos reconheçamos como classe e que não tenhamos amor e companheirismo umas pelas outras.

Em meio ao contexto pós-moderno, mais que nunca devemos afirmar nossa realidade sexuada e chamar as coisas pelo seu nome: Ana Campestrini não foi somente mais “um assassinato LGBQI+”,[9] Ana Campestrini é mais uma lésbica assassinada por desobediência corajosa ante a classe masculina. Esse é um risco que todas nós mulheres e lésbicas compartilhamos. Essa é uma opressão baseada no sexo. Neste regime, tragicamente, muitas vezes mulheres não têm escapatória da violência dos papéis sexuais impostos: transição, feminilização/objetificação desumanizadora, ou morte. [10] A ignorância que nos é imposta acerca de nós mesmas é a pedra angular da opressão que sofremos, assim disse Adrienne Rich [11], logo, é urgente que nos posicionemos contra a investida patriarcal contra a classe mulheres atualmente operada através da obliteração da realidade material, até mesmo no nível legal, com a revogação lenta do conceito de sexo sendo substituído por gênero, sendo que o último peca em não especificar a realidade destes corpos sexuados mulheres [12].

Isso também nos remete ao ataque lesbomisógino que a vereadora Verônica Lima (PT-Niterói) lésbica negra desfeminilizada, sofreu da esquerda misógina também este ano: Paulo Eduardo (PSOL) [13] vinha perseguindo e constrangendo a vereadora, como de praxe com butchfobia e lesboódio: afirmando que se ela “queria ser homem” a ia “tratar como homem”, em tom de ameaça. Nisso ela responde: “Não quero ser homem! Eu amo ser mulher, sou uma mulher lésbica, a cidade toda sabe, isso não é escondido (…) Sou uma parlamentar com diversas produções legislativas que dispõem sobre a violência contra as mulheres e o combate às opressões”. Mesmo sendo autonomistas, nós reivindicamos o gesto de Verônica que representa a todas, pois nós lésbicas não queremos ser homens. Não queremos nos igualar aquilo que rechaçamos eticamente, sobretudo.

Vereadora Verônica Lima (PSOL) com boletim de ocorrência registrado contra colega Paulo Eduardo, que cometeu discriminação lesbomisógina contra a vereadora.

Lésbicas são desertoras da feminilidade, nossa existência afirma a humana do sexo feminino não-adulterada pelo papel sexual construído e imposto, grita que mulher não é o equivalente de feminilidade. Tal pressão lesbomisógina vem atingindo especialmente lésbicas mais jovens e causando a desaparição das lésbicas pela transição de gênero forçada pelas circunstâncias socio-culturais que desvalorizam nosso sexo. Portanto afirmamos: negar a mulheridade das lésbicas é violência simbólica.

Por tudo isso, mais do que nunca é necessário resgatarmos o sentido original e raíz do lesbofeminismo do que significa ser lésbica. Estamos além das determinações de uma natureza. Não se nasce lésbica: torna-se. E esse é um gesto de valentia que temos orgulho de exibir e afirmar que escolhemos. Não somos uma minoria determinada geneticamente, para a paz dos heterossexuais. Somos uma chama que se alastra no coração de cada devir lesbiano nas mulheres de todas classes sociais, culturas, territórios: a idéia da possibilidade de amar mulheres. Nenhuma natureza nos determina. A lésbica é hoje, a real autonomia sobre nossas corpas que todas as mulheres podem exercer. Autonomia essa, não pervertida em sentidos liberais e capturada de uma forma ou outra para atender os interesses masculinos. E acima de tudo, a lésbica é a expressão máxima da liberdade humana feminina em todo seu potencial e beleza, levada às ultimas consequências e propondo mudança civilizatória em chave feminina para o mundo.

Nós estamos além da identidade: lesbiandade não é um reclamo minoritário por direitos de algumas mulheres, é uma consciência feminina radical a ser criada em todas mulheres, pois todas podem lesbianizar suas mentes e vidas.

O luto por Ana Paula traz a memória traumática coletiva o gosto amargo da brutalidade dos casos de Luana Barbosa dos Reis (presente!) e Marielle Franco (presente!), assim como Sarah Hegazi (presente!), Nicole Saavedra (presente!), Pepa Gaitán (presente!)e tantas outras (presente!)que também se foram. Um mundo sem lésbicas é como um dia sem sol, cada lésbica que nos é tirada apaga um pouco o brilho desse mundo. Mas a resistência é fértil e feminina e a cada dia nascem novas rebeldias lésbicas. E por isso estamos aqui, para criar novas consciências sapatonas que radicalizem o mundo.

Em memória a todas que lutaram e caíram nessa guerra ancestral de amazonas contra o sistema dos homens, à todas que com suas vidas, permitiram que possamos estar aqui hoje, celebrando e gritando nossa visibilidade para todas as mulheres serem livres. A todas que resistem às violências físicas, econômicas e simbólicas. Sigamos em Rebeldia Lésbica.

HOJE E SEMPRE!

REFERÊNCIAS:

[1] “Bolsonaro presidente: Sudeste e Sul têm peso decisivo na eleição ao darem 6,5 milhões de votos a menos ao PT”. Em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45997474

[2] Monique Wittig. O Pensamento Heterossexual e outros Ensaios.

[3] Para saber mais sobre a lei de alienação parental: https://www.geledes.org.br/alienacao-parental-uma-nova-forma-de-violencia-contra-mulher/

[4] Maria Milagros Rivera. O Prazer Feminino é clitórico.

[5] “1 pessoa morre a cada 15 segundos no mundo por coronavírus”. Em: https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/1-pessoa-morre-a-cada-15-segundos-no-mundo-por-coronavirus,19908db1ede3464db9d5212c59174f5djbm4cnff.html

[6] “Seis mulheres morrem a cada hora em todo o mundo vítimas de feminicídio por conhecidos, diz ONU” https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/11/26/seis-mulheres-morrem-a-cada-hora-vitimas-de-feminicidio-por-conhecidos-em-todo-o-mundo-diz-onu.ghtml

[7] “Argentina reconhece o cuidado materno como trabalho para aposentadoria. Entenda.” Em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/07/argentina-reconhece-cuidado-materno-como-trabalho-para-aposentadoria-entenda.shtml

[8] Carla Lonzi. Escupamos sobre Hegel.

[9] “Morta com 14 tiros: ‘Ana só queria ser feliz sendo lésbica’, diz namorada “. Nesta reportagem se referem ao lesbocídio de Ana como “assassinato LGBTQIA+”. Em: https://www.uol.com.br/universa/colunas/morango/2021/06/30/ex-marido-mandou-matar-ana-paula-campestrini-lesbica-com-14-tiros-no-pr.htm

[10] Recomendamos a leitura de “O Ódio a Corpos Femininos não-Feminilizados” redigido por Jan e Laila Maria do Memória Lésbica: https://link.medium.com/FqcSKOVlQgb

[11] RICH, Adrienne. Blood, bread and poetry: selected prose 1979–1985. Norton Paperback, 1994.

[12] Veja mais a respeito Campanha Pelos Direitos Humanos das Mulheres (WHRC): https://womensdeclaration.com/en/country-info/brazil

[13] “Vereadora de Niterói faz BO contra colega do Psol por lesbofobia. Partido reprova atitude”. Em: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2021/07/vereadora-veronica-lima-pt-niteroi-bo-lesbofobia-machismo/

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Memória Lésbica

O legado sapatão não será apagado: conteúdo lesbofeminista que busca retomar as raízes rebeldes do movimento de lésbicas.